Arthur estava se sentindo inquieto. Desde que chegara em São Tomé - há quase um ano já -, não se sentia tão ansioso como estava naquele dia.
Tinha acabado de ver o Lucas na TV - ou pelo menos alguém que se parecia muito com ele. O que só poderia significar que era o mesmo. Afinal, coincidências desse tipo não aconteciam - muito menos na vida dele, como já tinha aprendido.
O problema é que a reportagem não trazia nada de novo, só informava o desaparecimento de um jovem, chamado “Nathanael”, que aparentemente era a única provável testemunha de um massacre. Ou seja, trouxe um desaparecimento com um upgrade de um assassinato “com requintes de crueldade”, de acordo com a repórter.
Nada novo na essência, mas mesmo assim preocupante.
Isso porque, Arthur - que em outra vida se chamava Daniel - já sabia desse sujeito. Faziam 6 meses desde que os seus contatos tinham lhe informado da presença de um possível sósia do Lucas na cidade de São Bento Abade - coincidentemente, bem pertinho de onde ele está.
Na época ele até cogitou largar tudo, mas, já que estavam perto geograficamente - e, pelo que soube, esse Nathanael não fazia absolutamente nada além de trabalhar numa lojinha na praça principal da cidade há uns bons anos já -, ele preferiu finalizar os trabalhos que ainda estava fazendo.
Agora se arrependia. E não sabia muito bem o que deveria fazer. Tinha se preparado para deixar a cidade naquela semana ainda - lá para a sexta feira, e já era quarta.
No caso, suas investigações estavam finalizadas - ficou muito feliz por ter conseguido encontrar a menina da Sônia, só esperava que aquela abdução não deixasse sequelas futuras... bom, qualquer coisa ela já tinha sido informada dos grupos de apoio em Varginha, lembrou -, seus contatos estavam avisados e suas contas todas pagas. Sua mochila, pronta, e sua casa, alugada.
O inquilino ia, inclusive, chegar na sexta mesmo, o que lhe dava só mais dois dias naquele lugar.
Como ainda era de manhã, ele podia ainda tentar pensar como seguir a partir do que tinha. Ele não duvidava que conseguiria mais informações que a polícia com relação ao Nathanael, afinal, já não era mais um jovenzinho universitário, suas capacidades e seu charme já tinham aberto muito mais portas que há uns anos atrás. O que não era pouco. Contudo, não sentia que isso seria uma boa coisa.
Diferente de anos atrás, esse sumiço parecia muito mais perigoso.
Balançando a cabeça, Arthur afastou esses pensamentos da mente - sua ansiedade estava alta, mas não parecia justificativa suficiente para ele recuar. Iria encontrar esse Nathanael e continuar suas buscas - já tinha protelado o suficiente.
Com um suspiro, ele levantou da cadeira e levou os restos do café da manhã para pia. Antes, contudo, que pudesse começar a limpa-los, a campainha tocou.
Esperando encontrar a Dona Joana - já tinha avisado para ela que não conseguiria manter presença nos encontros mensais na “Garganta do Diabo”, mas a senhora vinha insistindo, só esperava não perder a paciência com isso -, ele nem se preocupou em verificar quem seria pelo olho mágico. Até porque, conhecia todos naquela cidade, e se não fosse ela seria algum outro morador.
Um erro que acabou se arrependendo depois.
Ao abrir a porta, Arthur deu de cara com duas pessoas, duas mulheres, que não pareciam muito felizes em vê-lo. A mais velha, especialmente, soltou um sorriso enviesado e, num tom jocoso, foi logo falando.
“Olá Daniel, quanto tempo, né?”
Daniel, que já quase tinha esquecido desse nome, arregalou os olhos, e dando um passo para trás, soltou num tom surpreso:
“Flora!?"
Nathanael chacoalhava dentro do Jeep. Não havia o que fazer, a não ser seguir em frente com a Coisa. Não havia nome para quem – ou o que – estava ao volante. Apesar de se parecer com uma pessoa comum, Nathanael conhecia muito bem aqueles olhos.
“Para onde vamos?” Ele perguntou.
A Coisa olhou para ele pelo retrovisor e deu um sorriso assustador, mas sem responder de fato com nenhuma palavra. Nathanael sabia para onde estavam indo, e seu coração começou a sair pela boca.
Arthur olhava para Flora, que estava sentada em seu sofá tomando uma xícara de café. Uma onda de nostalgia se abateu sobre ele. Anos atrás ele e Flora iniciaram seu hábito de tomar café bem forte enquanto estudavam os indícios do sumiço de Lucas e da morte de seu pai. Agora, ele sentia que ela era uma desconhecida. Flora parecia mudada e ele também não era mais o mesmo. Mas a outra moça, sentada e fuzilando-o com o olhar, não parecia nada diferente da última vez que a tinha visto.
O que Arthur sentia era que naquele momento, enquanto esperava Flora começar a falar, o destino finalmente se alinhava para os dois – ou os três. Um calor subiu pelo seu corpo, o coração começou a acelerar, sua respiração ficou mais rápida. Ele estava ansioso. Animado e ao mesmo tempo temeroso do que iria acontecer dali para frente.
“Flora...” Ele começou.
Ela levantou a mão contrária à que segurava a xícara, como que pedindo um tempo. Tomou o último gole e suspirou, sorrindo satisfeita. “Ah, o bom e velho café mineiro...”
Ele se aproximou, pegando o bule e preenchendo mais uma vez a xícara de Flora. Ofereceu à outra convidada e colocou para si mesmo. “Um brinde aos reencontros?” Ele brincou. Flora deu um sorriso irônico, mas levantou sua xícara também. A terceira olhava apenas para Arthur, como se o estivesse desafiando a continuar com o galanteio.
“Daniel, você brincou por tempo demais de caçador paranormal.” Flora iniciou a aguardada conversa, observando a fumaça do café. “Confesso que te encontrar aqui foi bem difícil, ainda mais com a sua nova identidade. Mas minha amiga aqui é muito útil quando o assunto é encontrar fugitivos.”
Arthur – ou seria melhor chamá-lo novamente de Daniel? - levantou a sobrancelha e se virou para a caçadora de fugitivos. “Lena, você sempre levou a melhor quando brincávamos de caça ao tesouro.”
“Engraçado...” Ela começou. “Por que será que você resolveu caçar sem a sua irmãzinha então?”
“Você sabe o porquê. Foi para protegê-la disso tudo. Essa merda toda já arruinou demais nossa família. Mas vejo que não dá para fugir quando nascemos em meio à lama, não é?”
“Ninguém aqui nasceu na lama!” Flora respondeu. “A sua família e a minha está envolvida em uma conspiração. Todos nós sabemos disso. Os pontos estão se ligando.
Lena se levantou e chegou perto dele. “Vai demorar muito para me abraçar? Sabe há quanto tempo espero por isso?”
O jeep se aproximava de seu destino. Um guarda abriu os portões e o caminho se seguiu no terreno árido. Muitos pedregulhos amontoados ao redor deles. Agora já era noite. A Coisa estava compenetrada, descendo a ladeira até o ponto mais baixo do terreno. Lá estava o grande lago artificial, chamariz de turistas em busca de belas fotos para suas redes sociais. Mal sabiam eles o que estava guardado no fundo. Nathanael sabia e, mais que isso, sabia que havia algo muito mais importante acontecendo. Muito mais do que naquele dia fatídico, tantos anos atrás.
“Flora” ardia em sua pele. “Ela está aqui.” Ele pensou. “Está muito próxima de mim. A conexão não mente.” Nathanael tentava elaborar um plano em sua mente agitada. Se Flora estava por perto, então era hora de agir.
O Ser puxava Nathanael com firmeza pelo pulso, embora o rapaz não estivesse oferecendo resistência. Nathanael conhecia bem a força superior dos Seres - física e psíquica.
Por todos esses anos enquanto limpava a loja ele pensava sobre essa qualidade. Supôs que Os Seres talvez usassem partes de seus cérebros que os humanos ainda mantinham adormecidas.
Sua evolução mental superior poderia ser consequência de um corpo maior - e portanto, cérebro maior; do ambiente de sua terra natal; ou mesmo de estarem alguns milhares de anos evolutivos à frente dos humanos.
De que importava?
Conhecer os mistérios dos Seres seria impossível para alguém que não fosse um grupo de cientistas renomados dissecando o corpo de um Ser.
O Ser colocou Nathanael em uma cápsula que parecia saída de uma versão steampunk de Star Treck. Nadou com a cápsula até o fundo do lago onde se revelava uma construção enorme, ela era simplesmente oval, lisa e brilhante. Nathanael tinha certeza de ser a nave dos Seres.
Dentro da nave, quando a cápsula foi aberta e Nathanael cruzou olhares com o Ser, o rapaz teve um flashback da primeira vez que viu aquele olhar.
Nathanael - que naquela época ainda era apenas Lucas - estava posicionado assim como o homem vitruviano e hermeticamente embalado entre duas camadas do que parecia um gel. Não respirava, não conseguia ao menos mover os globos oculares, mas ainda estava vivo e aterrorizado. A noção de tempo se perdera. O mesmo gel que o imobilizava provavelmente era o que o mantinha com vida.
Até que um par de olhos quase humanos surgiu fitando os seus. Era o Ser.
O Ser usou o que parecia um laser com a finura de uma folha de papel para separar as duas camadas do elemento que era quase um com Lucas. Quando o primeiro sopro de ar bateu em seus pulmões a dor foi insuportável. Mas o Ser já cobria sua boca antes que pudesse gritar. Sem precisar abrir os lábios o Ser disse:
"Silêncio. Você já sabia de mais sobre nossas rotas, mesmo que não compreendesse. Tivemos que te trazer. Para seu azar você não tem no organismo o componente que precisamos, logo, você é descartável. Quer saber como descartamos? Olhe para sua embalagem. Ela já foi um humano igualmente descartável. Para a sua sorte eu vou te libertar. Mas nenhum dos outros pode saber que você escapou de converter seu organismo em uma embalagem de conservação. Eu vou tirar uma parte de você e devolver para a embalagem. Eles vão estranhar você ter transmutado em tão pouco gel, mas terá o seu dna, assim eles vão acreditar que simplemente seu organismo era defeituoso. Vire de lado, isso vai doer, mas menos que a transmutação. Quando eu acabar você não vai lembrar de nada, apenas dessa mensagem: Você é a minha extensão na Terra, não pode fugir de mim"
Depois disso Lucas era um homem perdido sem nome, memórias ou roupas. Quando já era Nathanael e lembrava suas origens, nunca conseguiu decifrar quais eram os interesses do Ser. Até agora, logo depois de fitar seus olhos pela segunda vez.