SEGUNDO CAPÍTULO - Parte 1

By Paixão

Seis anos depois

Nathanael estava muito cansado - tinha tido um turno estressante na loja. Além dos clientes, Marcus tinha vindo pedir ajuda no computador, como fazia todo santo dia - o que lhe tomou toda a sua hora de almoço.

Não conseguia entender como um senhor de menos de 60 anos ainda tinha dificuldades nisso - até porque, se ele, Nathanael, tinha conseguido, qualquer um conseguia. Ao seu ver, era só um pouco de esforço - talvez não com a mesma facilidade que ele tinha com as máquinas, mas alguma Marcus deveria ter.

Contudo, sentia que faltava interesse ao senhor, ele com certeza não parecia se esforçar muito para entender alguma coisa nesses encontros que tinham.

Bom, sendo isso ou não, preferiu deixar para lá, como sempre fazia. Não tinha direito de se sentir ingrato com relação a ele, afinal, se não fosse sua ajuda, onde estaria hoje?

Talvez num hospital, ou na pior das hipóteses, em uma instituição - daqueles estilo área 51.

Toda vez que pensava nisso estremecia. Tinha medo de imaginar o que poderia ter acontecido com ele, se o caseiro não o tivesse encontrado naquele dia.

Por sorte, na época, nem mesmo os donos da casa foram avisados - os únicos que ficaram sabendo da situação foram os jovens que esbarraram nele - e que, depois ele soube, não eram da cidade, o que permitiu com que ele se estabelecesse lá, sem ter medo de encontrá-los -, e Marcus, que acabou encontrando-o no rio, nu e mais perdido do que nunca.

By Barbosa

Nathanael saiu da loja arrastando os pés pela calçada. Sentia uma dor horrível na sua cicatriz – companheira de todos aqueles anos. Ele sabia que choveria dali a pouco tempo, mesmo com o céu com poucas nuvens. Apertou o passo e entrou no portão de casa assim que os primeiros pingos grossos começaram a molhar as ruas.

Ele não morava sozinho. Dividia a casa com uma senhora e seus dois filhos. Alugava um pequeno quarto havia dois anos, e assim sua vida seguia normalmente. Claro que normalmente não era a melhor palavra para alguém como ele. Nathanael precisava conviver diariamente com o fato de não se chamar Nathanael, e com uma cicatriz ora dolorida ora não.

Há seis anos atrás, ele era apenas um rapaz sem memória, confuso e assustado com a sua situação. Durante o primeiro ano, nenhuma lembrança vinha à sua mente, mas a luz branca sempre o perseguia. Marcus deixou que ele ficasse em sua casa e ajudasse no sítio – não o que ele fora encontrado, mas o que fazia divisa e ao qual o caseiro cuidava. Nathanael não conseguia se imaginar frequentando aquele lugar de novo. No segundo ano, Nathanael começou a se lembrar de uma mulher. Ele não conseguia distinguir muito bem a figura dela, mas uma certeza se apossou dele: Aquela era Flora. A tatuagem formigava ao lembrar da imagem. Não sabia se era uma antiga namorada, mas ele guardava um carinho pelo nome e pelo rosto desfocado.

Marcus sempre o incentivava a ir atrás da sua família, de quem era, mas Nathanael não queria. Toda vez que o pensamento de buscar respostas lhe ocorria, uma dor alucinante despontava de sua têmpora direita. Ele não entendia muito bem, mas tinha a impressão que era uma aviso – um alerta de algo proibido.

No terceiro ano Marcus lhe obrigou a ir à prefeitura para tirar os documentos. Nathanael passou por um processo dificílimo e burocrático. A assistente social queria divulgar o seu rosto para encontrar sua família, saber exatamente o que tinha acontecido para com ele, mas o rapaz se recusou veemente. Ele desistiu e somente em seu quarto ano pós amnésia, Nathanael conseguiu em outra cidadezinha fingir que nunca havia tirado documentos na vida. Marcus ajudou, dizendo que era seu pai e que não tinha registrado a criança quando nasceu. A história era maluca, mas resultou em um RG, CPF e novo nome.

No quinto e sexto ano, Nathanael começou a trabalhar na lojinha e alugou o quarto dos fundos, no qual fica sua cama de solteiro, e na qual ele estava agora deitado. Ele tirou as meias e olhou para “Flora”. Sorriu. Como ela estaria agora? Pegou o celular e pesquisou o nome no facebook. Ela tinha um sorriso triste, mas ainda bonito. Nathanael suspirou e se dirigiu ao banheiro. Mais um dia da sua rotina. Mais um dia fingindo ser quem não era, agindo como se nada de estranho rondasse a sua história. A água do chuveiro escorria pelo seu corpo marcado pela experiência mais assustadora e reveladora da sua vida. Ele olhou para a cicatriz, passou os dedos pela parte enrugada, e seguiu seu olhar para os pés. “Flora” olhava para ele também. Fazia dois anos que a vida dele mudara completamente. Ele fazia tudo aquilo por ela; para protege-la, afinal, fazia dois anos que sua memória voltara, e ele precisava continuar o que começara há sete anos.

By Baeta

Nathanael estava tão absorto em seus pensamentos que eles poderiam durar uma eternidade. Mas a realidade escolheu um caminho diferente.

Seus pensamentos foram interrompidos e Nathanael caiu no chão uma fração de segundo após um forte estrondo que fez a casa toda tremer. Assustado, mas com a coragem de quem já tinha visto mais do mundo que a maioria, ele correu na direção do estrondo e origem do tremor. Abriu a porta de seu quarto e com os pés descalços correu até a sala da família que o hospedava.

Um Jeep havia rompido a parede que tinha uma enorme janela central. Ela fazia a claridade entrar e deixava a casa exposta visualmente. Estava no meio da sala, entre suas rodas o sofá despedaçado. Mas ele não viu a destruição do sofá. No parachoque, nas rodas e na frente do carro estavam despedaçados a dona da casa e seus dois filhos. A tv que eles assistiam continuava em pé e intacta, como por ironia.

A cena de sangue e morte paralisou Nathanael que um dia foi Lucas. Agora já não tinha mais valentia. Nada prepara um homem para esta cena: Para os pedaços de membros espalhados pelo chão da casa, a cabeça amassada por uma roda e os corpos rasgados.

A porta do Jeep assassino abriu. Claro que havia de ter alguém atrás do volante. Jeeps podem penetrar paredes e atropelar pessoas. Mas a alcunha de assassino cabe apenas à pessoa atrás do volante. No caso, não tão pessoa assim. O ser que saiu do carro quebrado e atolado entre reboco, pedaços de sofá e cadáveres parecia humano, mas não era.

"Está na hora de fingir para si mesmo que pode se esconder e vir comigo."

By Paixão

Dois anos antes, em algum lugar no deserto da Atacama.

Faziam exatos cinco anos desde o desaparecimento de Lucas. Sem muitas pistas, Flora não sabia o que sentir. Para ela aquela busca já estava se tornando muito complicada - principalmente por conta da última informação que teve: Daniel tinha sumido.

Depois daquela conversa anos atrás, no apartamento, eles tentaram de todas as formas seguir com as investigações. Contudo, nada acabou surgindo daquilo. O livro, que falava sobre posições estrelares e planetárias, se mostrou inútil, no final, assim como o mapa - que não combinada com nenhuma imagem cartográfica no planeta, antiga ou atual.

Algo frustrante para ela, porém devastadora para Daniel. Tanto que, sem aviso, ele continuou suas pesquisas sozinho.

As mesmas que ela tinha recebido por correio, da irmã dele, Lena, um ano atrás, quando ele desapareceu.

Suspirou, voltando ao mundo real.

Já estava quase terminando o turno de trabalho, e logo poderia retornar ao seu quarto - talvez revisasse aquelas anotações... não sabia dizer, mas sentia que estava deixando passar algo importante.

Antes, porém, um bipe alto começou a soar.

O susto que levou fez ela pular na cadeira. Era a primeira vez que ouvia aquele som em dois anos, quando chegou naquele local - o que tornava aquilo uma situação bastante peculiar.

Num primeiro momento, imaginou que poderia ser alguma anomalia percebida pelo telescópio, contudo, quando foi verificar o programa no computador, levou outro susto.

Era um aviso do código que tinha colocado quando começou a trabalhar ali - foi uma atitude do momento, nunca imaginou que fosse encontrar algo com relação ao irmão, mas achou que o acesso aqueles computadores poderia lhe ser útil.

Continua