PRIMEIRO CAPÍTULO - Parte 3

By Paixão

“Certo, talvez seja necessário entender um pouco sobre a história desse livro. Mas, antes, gostaria de repassar tudo que a gente já sabe até aqui.”

Ao dizer essas palavras, Daniel resolveu se levantar e começou a caminhar ao redor da sala. Estava muito inquieto. Sentia que tudo estava começando a caminhar de forma acelerada e temia perder alguma informação importante. Principalmente porque era a primeira vez em cinco anos que tinha alguma pista relacionada ao assassinato do pai.

Sabia que a mãe não queria mexer naquele vespeiro, mas ele também sabia que enquanto não entendesse realmente o que tinha acontecido, nunca iria sossegar. E ainda tinha a questão da irmã, Lena, sentia que devia isso a ela - descobrir o que tinha acontecido com o pai deles.

“Até onde eu sei, a minha única informação é esse mapa, Daniel. O resto quem precisa informar é você.”

A indignação no tom da voz de Flora surpreendeu um pouco Daniel. Até o momento ele não achava que a situação estivesse incomodando-a tanto - pelo menos não tanto quanto a ele. Contudo, ao retornar o olhar para ela, que se mantinha sentada no sofá, bebericando a sua xícara de café, não pode deixar de compreender o quão desgastante aquilo deveria estar sendo. De todos os envolvidos - e isso incluía o próprio Lucas, que estava desaparecido -, ela deveria ser a que menos compreendia o que estava acontecendo. E apesar dela e o irmão nunca terem sido tão próximos, o desgaste emocional ainda era grande.

“Verdade... quem precisa informar sou eu. Bom, então acho que preciso te contar tudo desde o começo.”

Ao dizer isso, ele retomou seu assento no sofá, ao lado de Flora, e esperou ela pousar a xícara na mesinha em frente. Em seguida virou o corpo em sua direção e soltou um suspiro.

“Você se lembra do incêndio de anos atrás?”

A pergunta a pegou desprevenida. Num primeiro momento não compreendeu o motivo da questão, contudo, começou a sentir que estava entendendo o que ele queria dizer, ao se lembrar daquele incidente em particular.

“Aquele acidente que resultou na morte do seu pai, o do sítio?”

“Sim, esse mesmo - só que não foi acidente.”

Aquela resposta a assustou. Era a primeira vez que Flora conversava sobre esse assunto com o amigo - na época tinha tentado oferecer apoio, mas sabia que era ao Lucas que ele recorria quando precisava. Dessa forma, ficou surpresa com a veemência da acusação de Daniel.

“Como assim, Daniel?”

“Isso mesmo que ouviu, Flora, assassinato. Ou melhor dizendo, queima de arquivo. Eu tenho certeza! Na época, muitos documentos do meu pai acabaram desaparecidos, alguns queimados e outros tinham sido simplesmente retirados do local, sem nenhum sinal de que algo tinha estado ali antes. Eu e a minha mãe conseguimos salvar algumas coisas - esse mapa foi um deles -, mas o grosso da pesquisa do meu pai desapareceu.”

Quanto mais ouvia, mais Flora sentia que o rumo daquela conversa estava levando-a para uma direção não desejada. Até porque, pela fisionomia do amigo, cada vez mais tensa, conseguia perceber que aquela era uma questão bastante complicada. Contudo, não conseguia evitar continuar naquele caminho - era o único que podia dar alguma luz com relação a localização do irmão, afinal.

“Mas o que isso tem haver com o Lucas, Daniel? O mapa chegou até ele como?”

“Isso é o ponto, eu não sei! Ou pelo menos, eu não tenho certeza, porque a cada minuto que passa eu acredito mais e mais que o Lucas pegou ele das coisas do meu pai. Até porque, acesso ele teve, já que na época eu pedi a ajuda dele... Eu tentei investigar possíveis motivos para o que aconteceu, mas ele sempre achou que eu estava exagerando...”

Suspirando, Daniel fechou os olhos e soltou os ombros, se deixando encostar totalmente no sofá.

“Agora eu já não sei mais nada.”

By Barbosa

Há alguns quilômetros dali, precisamente em um sítio esquecido, um grupo de garotos caminhavam, com mochilas nas costas, algumas barras de cereais e garrafas d’água chacoalhando, e ouvindo música enquanto conversavam.

Eles sabiam que lá havia um ótimo lago para nadar. A cidade não era grande o suficiente para oferecer boas distrações, então nada melhor que praticar saltos do alto de grandes pedras, e aquele sítio possuía um excelente local para isso. Há cinco anos era normal esse tipo de passeio, mas desde que o dono da propriedade morrera, o sítio fora fechado e, seja por respeito à dor da família ou por vergonha de pedir, os garotos não foram mais lá.

Mas hoje era diferente. O calor era terrível, e o rio que eles combinaram de ir estava lotado de famílias, e todos sabem que adolescentes fogem de qualquer ambiente que lembre os próprios pais. Dessa forma, foi sugerido que retornassem ao sítio antigo, afinal, já havia cinco anos que ninguém ia lá. Quem será que reclamaria de quatro garotos de dezesseis anos querendo apenas se refrescar?

Este era o contexto dos quatro garotos caminhando na pequena estrada tomada pela vegetação, que crescia alheia à qualquer luto. E este era o motivo para que, depois de trinta minutos perdidos no caminho modificado, o grupo encontrasse a casa destruída pelo incêndio, entrasse nela movido pela curiosidade e achasse, meio assustado, meio desnorteado, um homem nu encostado na carcaça de um sofá.

Eles, como adolescentes normais – e não heróis de algum filme de suspense ou terror-, saíram correndo para não voltar mais, deixando o pobre homem sozinho, ainda sem saber o que tinha acontecido com ele. A sua última lembrança era estar sentado em seu quarto e ver uma forte luz vinda de fora. Quanto mais tentava entender o que vira, mais ele percebia que, fora a luz, não lembrava de mais nada, inclusive quem era.

By Baeta

O que é um homem que não sabe quem é? Será que sabe que é homem? Será que continuaria sendo um homem?

O homem sem memória, nu, sujo e assustado gritou pelos rapazes - um grupo de estranhos tão assustados quanto ele era melhor que a solidão em que estava desde a hora em que acordou ali.

Seu grito por socorro soou para os adolescentes em fuga como um urro primal. E o medo fez o que parecia impossível, possível: correram mais rápido ainda, tão rápido que mal sentiam os pés tocando no chão.

Foram apenas alguns minutos de quebra de solidão para aquele homem. Mas foi o bastante para funcionar como um tônico de coragem. Pela primeira vez se levantou e foi até uma das saídas da casa. O sol perturbou seus olhos, e quando o incômodo passou havia apenas mato e céu.

Instintivamente o homem começou a correr sem rumo entre a natureza como o animal assustado que era. Procurava algo sem saber o que poderia ser.

Quando seu corpo fraco cansou, o homem se permitiu cair de joelhos e escutar o barulho da água. Lembrou que tinha sede. Era a cachoeira para a qual os quatro jovens jamais voltariam tamanho o seu temor e chacota que ouvirão de todos da cidade por seu relato.

O homem desmemoriado que talvez não fosse mais homem seguiu o som até as águas. Entrou na cachoeira até ficar submerso e erigiu das águas limpo e aliviado. Boiou sentindo o sol queimar seu corpo que acabou por retornar para a margem. Sentou em uma pedra e passou a mão na cabeça, percebeu que tinha o cabelo raspado e algo desenhado na nuca. Tateou o desenho, não conseguiu definir se era cicatriz ou outra coisa.

Começou a tocar e olhar seu corpo como se estivesse sendo apresentado à ele. Tinha uma cicatriz grande na lateral do corpo, na altura do rim esquerdo. Continuou descendo o olhar e as mãos pelo corpo, até chegar aos pés. Na lateral do pé esquerdo tinha algo escrito, uma tatuagem. Dobrou o pé mais um pouco e conseguiu ler a palavra "Flora".

SEGUNDO CAPÍTULO